Do fundo do meu Baú

SÓ ME RESTA ESCREVER

Primeiro a água, depois o fogo!!! Não sei se foi assim no Antigo Testamento. Só lembro da história do Noé, sua arca e seus bichinhos (um par de cada) no alto do Monte Ararat na Turquia de hoje. Noutra terra  montanhosa, com nome sugestivo – Itaara, a pedra alta – as pedras foram jogadas do céu. Ninguém tem telhado de vidro. Muitas Madalenas se esconderam debaixo da cama. Feriado de sete de setembro, dia bom para descansar, ler, ouvir música. Quem dera! Passei a odiar os feriados. O único som daquele noitedia foi a chuva invadindo minha casa e inundando minha alma. Outros trinta e cinco diasnoites se passaram. Outro feriado. Viva Nossa Senhora Aparecida (achada nas águas do rio Paraíba do Sul) ou Viva as Crianças (mais uma data para materializar o amor paternal). Eu resolvi encarar o monstro de frente. Promessa do Dia da Criança. Vou me comportar e ganhar mais um livrinho de histórias. Sempre foi meu presente favorito. Lembrei disso ao encontrar o Ratinho Rói-Rói. A primeira história que li por inteiro estava lá, com alguns respingos, mas salva das águas. Meu ratinho tem quarenta anos e me acompanha até hoje. Mesma sorte não teve a minha coleção de postais. Eram mais de quatrocentos, armazenados com zelo desde meus quatorze anos, classificados por cor ou preto e branco, países, cidades do Brasil e muitas, muitas da Santa Maria da minha infância. Minhas outras cidades amadas, Paris, Rio, São Paulo, Porto Alegre. Cartões recebidos de amigos, pais e amores no tempo em as pessoas trocavam correspondências e não apenas e-mails. Cartões enviados por mim e guardados por mais de vinte anos pela minha mãe. Um bloco de mofo. Um monte de cinzas. O escritor Orhan Pamuk recuperou fotos da Istambul de sua infância para contar e reescrever a história da cidade em suas memórias. Eu queimei as minhas. Só me resta a minha memória. Visual, tátil. A virtualidade de hoje não me completa. Não basta ler a tela, nem imprimir. Quero tocar, sentir, cheirar. Os objetos perderam sua aura, já disse Benjamim.  Até as relações são fugitivas, efêmeras. O tempo de apagar uma mensagem e escrever outra Onde esperava encontrar solidariedade, encontrei egoísmo. Quatro dias subindo no telhado, enfrentando desesperado, sozinho, o vento, a chuva. Poucos me estenderam a mão. Outros foram pagos pelos seus serviços. Só não tentaram me vender indulgências. Ainda. Embora jamais tenha lido a Bíblia, ela invade meus escritos. Assim como o Kid Abelha cantando Claudinho e Bochecha (Jesus, me salva!) invadiu minha mente por três longas noites. Sempre a mesma música. Aquela que eu ouvia ao deixar minha casa para trás. Entregue à chuva. Os mais crédulos dirão: a Deus! Eu digo não meta Deus no meio que ele não tem tempo para cuidar de tanta gente. Graças a Deus, se Deus quiser. Grande merda. Graças a mim. Se eu quiser eu me recupero. Foi assim com a agressão no baile de formatura, frente aos meus alunos. Foi assim quando meu pai morreu. Na minha frente. Foram longos e dolorosos processos. Ainda não os venci por completo, mas eu me supero. Foi assim também quando me separei. As duas vezes. A primeira foi cerebral. Por carta. Consegui recuperar algumas. Úmidas mas ainda legíveis. A segunda separação me consumiu cinco anos. Longos e aflitos. Boa hora para fazer um balanço e ver o quanto eu cresci e no homem em que me transformei. Mas não agora. Meus cadernos do primário, minhas lições de português (eu sempre em primeiro na turma), meu boletins. Tudo água e agora cinzas. Descubro no meu álbum de nascimento que pesava três quilos seiscentos e cinqüenta gramas ao nascer, que sorri pela primeira vez aos trinta e oito dias e gargalhei aos três meses. Engraçado. Minha mãe me considera taciturno, mal humorado e antipático. No entanto, eu a reconheci após trinta dias de vida. E sorri!!! Quarenta e seis anos se passaram e ela ainda não aprendeu a conhecer o filho que tem – embora tenhamos o queixo saliente como sinal particular. Está lá no álbum do bebê. O gosto pela língua e cultura francesas eu devo à minha mãe. Aprendi a Marseillaise antes do Hino Brasileiro (ela vai dizer que é mentira). Corrigia as provas, ajudava a pintar os bonequinhos que ela pendurava no feltro com bombril para dar aulas. Nunca pensei que um dia estaria morando em Paris. Lembrei disso ao conseguir salvar os métodos que ela utilizava para ensinar a língua: Aprenda Francês e Français à Domicile, com seus discos de vinil e o método Capelle do bonjour c’est Philippe Ledoux. Do meu pai eu herdei o gosto e o talento para o teatro. E a paixão pelo cinema. Sinto muita falta dele. A foto em que estamos abraçados nos seus oitenta anos, escapou das águas. Continua lá. Nenhum dos dois se moveu. Ela me dá forças. Toda a atenção que minha mãe dispensou às filhas, meu pai compensou se preocupando com os filhos. Talvez sem perceber. Um pouco por culpa. Resquícios da morte do primeiro filho que ainda atinge toda a família. Há quarenta e três anos. Lembrei do meu irmão porque a revista InterValo era sua favorita. Ele amava a jovem guarda. O número com os reis Orlando Silva e Roberto Carlos na capa era antológico. Mofo. Cinzas.A imagem dele que me vem à mente é uma silhueta, com gola olímpica vermelha e um violão nas mãos. Eu me lembro ou foi minha mãe que me contou? Os recortes de jornal das peças que fiz nos anos oitenta – e que foram para o fogo – me remetem ao meu pai. O teatro entrou cedo na minha vida. Foi no Cine Teatro Imperial. Pelos bastidores. Eu cruzei a cena, ele abriu a cortina e me fez descer para a plateia. Estava selado meu destino. Produtor e ator. Atrás ou no palco. Anos depois, fui atuar na escola de teatro da qual ele fez parte. Vi o texto que encenei se queimando na fogueira sem vaidades e chorei pelas boas lembranças. Chorei por meu pai. Chorei por mim. Ele sempre compareceu às minhas estreias, aqui ou em Porto Alegre. Não consigo chorar pela minha mãe. Ela é inquebrantável, construiu uma redoma de vidro com a qual se protege do mundo, de mim, e rechaça toda e qualquer opinião contrária à sua. Será que vou chorar depois que ela morrer? Sei que chorei muito quando Marlene Dietrich morreu. Nós dividíamos a mesma cidade: Paris. Lembrei disso ao ver o jornal em que ela aparece na capa no dia seguinte à sua morte. Uma pequena obra-prima: Un Ange Passe. O anjo azul. Magnífica em Testemunha de Acusação, texto da Agatha Christie. Um dos tantos livros que perdi na água e no fogo. Hercule Poirot, Inspetor Maigret, Ripley, todos queimados. Histórias policiais são minha paixão. E agora? Só me resta escrever para me libertar. A escrita pode me aproximar da hüzün, palavra turca que significa melancolia. A tradição muçulmana explica que não devemos nos importar tanto com as perdas terrenas. A corrente sufista acredita que não deve haver nenhum interesse por posses e bens materiais. Eu já estava aprendendo a viver com menos. A hüzün é a alma do povo turco. Na verdade, recorro a Pahmuk (mais uma vez) e faço minhas as palavras dele ao encerrar suas memórias sobre Istambul: “Vou ser escritor”.

Bebeto Badke

12 e 13 de outubro de 2009

Em Itaara

5 respostas para Do fundo do meu Baú

  1. Juliano Pires disse:

    Como tu me diria, impossível não nos reconhecermos como mestre e discípulo… Em determinados momentos a tua história se assemelha a minha, em outras, se inverte totalmente. Mas, no fim das contas, percebo que toda relação entre pais e filhos tem traços peculiares, embora predomine a oscilação entre momentos conturbados e amorosos.

  2. Carol Ferreira disse:

    Os dias de chuva me deixam cinza. Talvez por este também ter sido um dia difícil para mim. Não sei se chove lá fora ou chove dentro de mim, algo que senti na tua escrita. Essas tempestades não lhe deixaram apenas perdas externas, mas muito mais internas. Me esbarro no teu blog como me esbarraria em qualquer leitura intensa. Resolvi ler porque sabia que seria. Me emocionei muito com os relatos. Me fizeram refletir sobre minhas lembranças de quando menina. Há dias procurava a palavra que usou ao fim do texto: melancolia. Demorei a encontrar a palavra exata para expressar o que sentia enquanto escrevia. Me vinha à cabeça tristeza, nostalgia…
    Pensava: – Porque escrevo tanto? E porque escrevo ainda mais quando estou abalada emocionalmente?
    Lia Clarice, Caio, Pessoa, e todos pareciam apontar a tristeza como algo que os impulsionava a escrever. Mas a palavra exata era melancolia.
    Os sufis sempre me pareceram um estágio o qual eu queria alcançar. Achei tão bonito ver o filme Encontro com pessoas notáveis, e as danças que eles faziam como meditação.
    Hoje vejo que também posso me superar, e viver como bem entender, afinal não é por acaso que chego sempre onde quero estar. E se onde estou não é lugar certo, sempre gostei de mudanças, sempre preferi dançar a minha música, e não aquela ciranda a que todos insistem em dançar.
    Contigo aprendi um pouco disso. És um dançarino primoroso, que baila em sua própria composição e faz isso muito bem. É dessa verdade que precisamos ao estar em uma academia e não o glamour ao qual gostam nos apresentar, ao qual querem que nos conformemos e façamos parte.
    Tenho somente a agradecer à ti enquanto professor e pessoa. Me ensinaste muito em duas cadeiras e algumas Feiras do Livro e SMVCs. Pela força que cria em cada um de nós (e incluo no ‘nós’ os mais atentos a tua fala e gestos, simplicidade e sinceridade).
    Obrigada por tudo. Da aluna, hoje, melancólica.

  3. Joyce Noronha disse:

    Bebs! Me segurei muito para não chorar enquanto lia teu texto. Primoroso! Vi tua transformação enquanto te recuperavas, e ainda recupera, da chuva que tirou tanto de ti. Porém nada, nunca, poderá fazer com que percas toda a energia, perseverança e alegria que transborda na tua personalidade. Como a Carol disse os que te rodeam e estão “atentos as tua fala e gestos, simplicidade e sinceridade” quando se afastam carregam muito de ti consigo. Por que assim tu és, esse professor, amigo e pessoa maravilhosa sempre disposto a estender a mão, mesmo quando ninguém faz o mesmo por ti.
    Parabéns mais uma vez pelo dom da escrita. Espero conseguir absorver um pouco deste teu talento para minha carreira e da tua sabedoria para a vida. Abraço grande da aluna, monitora, orientanda, parceira no amor pelo cinema e amiga Joyce.

  4. Rômulo disse:

    Belo texto, Bebeto. Confesso que também me deixei envolver pela melancolia dele. Compartilho de muitas das tuas referências e a paixão pelas artes. É estranha a maneira como a vida nos coloca em situações em que faz necessário “revirar o baú”, e a tristeza e a melancolia (ou hüzün) fazem parte do processo. Acredito que tudo isso deva fazer parte de nossa evolução pessoal. Enfim, te desejo dias melhores e boa sorte na tua jornada. Um abraço do teu ex-aluno.

  5. Mariana Silveira disse:

    Teu texto me conduziu aos estados que Barthes denomina prazer e a fruição. Ele desperta prazer, o prazer que qualquer leitor tem diante de um texto bem escrito, conduzido de forma leve, fluído, bom de ler. Mas não nos enganemos. Leve, porém intenso. Aí entra a fruição, a capacidade de desacomodar aquele que lê. Teu texto causa estranhamento, necessidade de reflexão. E o leitor que lide com os brancos da página como puder… Que a sensação de melancolia lhe invada o quanto ele permitir.
    Quem desenvolve um contato mais próximo com manifestações artísticas se deixa invadir com facilidade. Desarma-se, está sujeito e disposto a submergir, envolver-se. Eu procuro o envolvimento, sempre. Nesse caso, a catarse foi rápida, certeira.
    Primeiro a água, depois o fogo. Conheço o processo inverso: primeiro o fogo, depois a água. Derradeira, ela faz do que já virou cinzas borrões pretos e úmidos. Descobri, quando completei 9 anos, que as lembranças queimam. Na minha estante faltam O menino maluquinho e A porta do vento, meus livros favoritos naquela época, engolidos pelo fogo. Onde havia uma casa, um degrau de pedra.
    Lembro de tu dizeres em aula que as tuas coisas mais essenciais cabiam em duas caixas de papelão. Imagino que alguns desses pertences tenham se extinguido entre a água e o fogo. Sei como é. Conheço a sensação. Repito para mim mesma que o essencial é guardar aquilo que realmente importa nos 21 gramas que se extinguem quando morremos. Nem sempre consigo. Eu gosto da presença das fotos, dos livros, dos bilhetinhos, dos postais, das revistas, dos CDs. Não se trata apenas de materialismo. Por trás deles estão pessoas, histórias, sensações.
    Me pergunto se – da forma frenética como vivemos hoje – teríamos a capacidade de parar e refletir sobre as coisas, caso deixássemos de esbarrar nesses objetos que nos despertam nostalgia. Na dúvida, vou alimentando minhas próprias caixas de papelão.
    Hoje me senti negligente. Ao menos, na época também me senti assim. Lembro de te encontrar pelos corredores e perguntar como estavas. Lembro da gripe, do semblante abatido; da minha vontade de perguntar se precisavas de alguma coisa. Não perguntei. Por vezes a barreira entre eu e o mundo cresce, ganha forma, dimensão, cor e textura. É mais do que injusto parecer não se importar com quem sempre se importa. Não me lembro de ter saído da tua sala alguma vez sem uma resposta, um contato, um direcionamento. Acho que por seres um Mentor nato, esquecemos que passas por Provações, que podes vir a precisar de Auxiliares em meio a tua Jornada.

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